O
Histórico Julgamento do Supremo Tribunal Federal, nos casos de interrupção da
gravidez de feto anencefálico
Marcelo
Henrique
Acompanhei,
com detida atenção e grande interesse, à histórica sessão do Supremo Tribunal
Federal (STF) nos últimos dias 11 e 12 de abril, na apreciação da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada na Corte pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), concernente às questões
de interrupção da gravidez de fetos portadores de anencefalia.
É
fato que, nestes últimos dias, anteriores e subsequentes ao julgamento, tive
conhecimento de inúmeros textos, artigos e manifestações em listas da internet,
tanto “solicitando”, antes, a mobilização dos espíritas para “protestarem”
contra a possibilidade de aprovação de um novo tipo de “aborto”, como na forma
de preces e vibrações em favor dos Ministros (para que estes pudessem votar
contrariamente), assim como um sem número de mensagens “analisando” as situações
espirituais de quem “aborta” ou perante as “Leis Divinas”.
Sabidamente,
o movimento espírita oficial tem uma campanha contra o aborto, por meio de
procedimento permanente e com vasto material informativo disponível na homepage
da Federação Espírita Brasileira (FEB), assim como ela, a federação, integra o
“Movimento Brasil Sem Aborto” como signatária e participante ativa. A FEB,
também, emitiu, logo após o julgamento, uma nota oficial (circular), assinada em
conjunto com a Associação Médico-Espírita do Brasil e a Associação
Jurídico-Espírita do Brasil, informando ter visitado o gabinete de todos os
julgadores e apresentado um memorial com argumentações jurídicas, médicas e
espíritas, calcadas em seu trabalho de valorização da vida e de esclarecimento
das leis universais, para “contribuir com o aperfeiçoamento moral e espiritual
da população”. Notável e nobre iniciativa, a propósito, importando em lícita e
lídima iniciativa de cidadania e participação política, digna de registro. A
nota, portanto, é correta e esclarecedora, motivo de admiração de todo e
qualquer adepto do Espiritismo em face do posicionamento de seus
representantes.
Contudo,
o movimento espírita em geral, seja o de iniciativa de federativas estaduais,
associações nacionais ou instituições civis, seja pela fala ou escrita de
dirigentes, expositores ou articulistas espíritas, em relação ao tema, desde o
ano de 2002, quando começaram a vir à tona notícias de julgamentos “autorizando”
a interrupção da gravidez, no caso de gestações desse tipo, via de regra, não
tem observado a ética kardeciana nem tem se comportado à luz do ensinamento
espiritual calcado na Codificação. Assemelha-se, muitas vezes, a manifestações
de caráter proselitista e fundamentalista, à feição de posicionamentos egressos
de outras religiões, notadamente a católica e a evangélica, como a prescrever
“ais”, “senões”, “apenações”, “julgamentos prévios” e, mais especificamente –
porque conhecedoras da realidade pós-vida, espiritual, com contornos
diferenciados em relação às congêneres, igrejas ou templos – fazer advertências
e “previsões” quanto ao futuro espiritual daqueles que, pelo uso do
livre-arbítrio, optaram pela interrupção da gravidez, inclusive para, de modo
equivocado, em nossa opinião, estabelecer “como” e “em que circunstâncias” se
dará a “reparação” do “mal causado”, por afronta às Leis Divinas, por
desobediência aos “desígnios do Criador” e pelo impedimento à encarnação de um
espírito. Chegam a atestar que é “vontade de Deus” a existência de um feto
malformado, com doença incurável e definitiva, a qual impede a manifestação
plena da identidade individual do espírito e que, em face de estatísticas
médicas, possui elevados índices de abortamento natural, ainda na fase
gestacional, ou de morte no parto ou logo após o mesmo, e de vida (quase que ou
plenamente) vegetativa, apesar de, é claro, como toda regra médica, existirem
alguns casos de sobrevivência (se é que podemos assim denominar) por semanas,
meses e até pouco mais de um ano.
Sabidamente,
a legislação brasileira, especialmente a criminal (que se encontra no atual
estágio de estudos para sua revisão, mediante comissão instituída especialmente
para tal fim, pelo Senado Federal), prescreve apenas dois casos de
descriminalização do aborto ou de autorização para procedimento abortivo: 1) a
que implique em risco de morte para a gestante (pelo privilégio a uma vida já
formada em detrimento de outra, igual bem jurídico, mas que ainda é uma
probabilidade); e, 2) a decorrente de violência sexual (estupro), para não
legitimar o efeito (fruto) de um crime anterior e considerando, acertadamente, a
inviolabilidade da personalidade e da sexualidade da mulher-mãe.
Não
legislou, como apressadamente alguns pretenderam dizer, o STF. Não substituiu o
Congresso Nacional, na função precípua de aprovar leis para vigência em nosso
país. Mas aplicou o Direito, como missão de tribunal constitucional que possui,
e realizou tarefa de aferição de cumprimento/descumprimento de preceito
constitucional. E com grande maestria e senso de justiça, diga-se de
passagem.
E
foi muito além disso, legitimamente. Ao realizar a hermenêutica jurídica para o
caso em tese, em regra – para que possa, o mesmo, depois, poder ser aplicado a
situações jurídicas e civis existentes em a Sociedade – fez JUSTIÇA. Devolveu à
mulher-mãe o direito de opção, a faculdade de escolher, diante da situação
concreta, de extrema dificuldade e de notório contorno psicológico, que merece
de qualquer cidadão de bom senso o exercício da misericórdia, da compreensão, da
caridade e da fraternidade, e não o posicionamento de censura, quais
controladores ou censores do comportamento alheio – e o que é pior, fundado na
interpretação mais que literal de “normas espirituais”, ou de configuração moral
religiosa.
Aquele
certo carpinteiro que por aqui esteve, e que é utilizado como “fonte” da
configuração material das estruturas e homilias religiosas de nosso tempo, no
mundo ocidental, jamais teria se referido à uma gestante de feto anencefálico
com o peso e a “estatura” dos homens “religiosos”, cristãos-espíritas ou
espíritas-cristãos de nosso tempo... Não mesmo! Teria ele exercido o seu
magnânimo entendimento sobre a limitação e a natureza errante, mas progressiva,
dos Espíritos, teria adotado a postura de irmão mais velho, que perdoa, ampara e
compreende e que, conforme teria dito a todos que particularmente atendeu nos
três anos públicos de seu ministério, afirmaria: teus (eventuais) “pecados”
estão perdoados...
Não
parece ser esta a postura dos profitentes (em geral) da Filosofia Espírita,
localizados no chamado “movimento espírita”. Ao contrário, se arvoram em juízes
e, de pronto, põem-se a desfilar versículos evangélicos ou respostas dadas pelos
Espíritos Superiores a Kardec, muitas distantes do contexto em que foram
formuladas e respondidas, como “excertos isolados”, para dizer, em nome do
Espiritismo, que tais criaturas estão cometendo os piores erros humanos e
“pagarão” centil por centil os débitos ora assumidos. Vão mais longe e já
estabelecem “conexões” entre situações existentes no cenário humano hoje (como,
dificuldades para engravidar, esterilidade ou doenças corporais) a “atos do
passado”, dizendo em alto e bom tom que os que interromperem a gravidez de um
feto anencefálico voltarão em condições similares às expostas acima, num
pré-julgamento sem defesa mas com alta expressão de promotorias, num
comportamento similar às teorias religiosas de todos os tempos, que são
ilustrativas de um Deus (ou de Ministérios ou Departamentos Espirituais) em que
se paga “olho por olho e dente por dente”, na moeda de atrozes sofrimentos, os
eventuais erros ou deslizes de seres (ainda) imperfeitos que somos.
Olho
para trás, para trinta anos atrás, quando comecei a entrar em centros espíritas,
a ouvir palestras e a participar de grupos de estudos, maravilhando-me ante a
retirada da “trave” que cobria o meu olho (eu que vinha de sólida formação e
primeira eucaristia, católicos), para o descortino de verdades tão racionais e
lógicas, que eu me perguntava: - Por que não tinha visto e sabido essas coisas,
antes? – e não vejo, hoje, o mesmo espiritismo pelo qual me maravilhei. Do
contrário, vejo criaturas carrancudas, de feições fechadas, como se comportassem
sobre seus ombros o “peso do Mundo”, como se não houvesse, na casa espírita,
espaço para o riso, para a conversa franca e amigável sobre TODOS OS TEMAS DA
VIDA, como se não pudéssemos ser HUMANOS, seres imperfeitos, mas, do contrário,
que devêssemos nos comportar como criaturas “perfectíveis”, com aura de
humildade mas com posição de dianteira, não fôssemos nós tão “devedores” e
imperfeitos, de fato, como qualquer das criaturas que adentra aos
centros...
Não
é, decisivamente, o mesmo Espiritismo. Temos, aí, um Espiritismo que condena,
que admoesta, que fecha portas, que IMPÕE a apologia do sofrimento como “um dos
caminhos que leva à evolução”, como se estivéssemos nós, algemados a ele em
função de nossas próprias imperfeições, o “mal necessário”, ou o “escândalo”, na
visão e versão bíblica. Não é o Espiritismo a “doutrina da prescrição”, da
“contextualização de penas presentes e futuras”, não obstante tenha o
Codificador, sabiamente tratado destes temas tanto na obra primeva (“O Livro dos
Espíritos”) quanto em “O Céu e o Inferno – A Justiça Divina Segundo o
Espiritismo”, para advertir os homens, em tese, e dar-lhe possíveis explicações
para situações da vida. Não veio para, à feição de pitonisas ou videntes,
antever o futuro de qualquer homem ou mulher de nosso tempo, como se de uma bola
de cristal estivéssemos a par do porvir espiritual de cada um...
Esta,
meus amigos, a Doutrina Espírita, é a DOUTRINA DA ESPERANÇA, que nos faz, a cada
dia que nasce (em que despertamos após as “viagens” do outro lado da vida para
as tarefas que nos cabem no mundo físico) um novo recomeço, uma oportunidade de
“fazer e refazer de novo” e que coloca, NAS NOSSAS MÃOS, a perspectiva da
construção pessoal de nosso próprio futuro, de nosso “destino”. Somos nós os
atores principais, os protagonistas de nosso sucesso ou fracasso e se é certo
que a responsabilidade é nossa, pessoal, intransferível, não será por “adágios
espirituais” ou “previsões e suposições”, ainda que sob a forma de
“orientações”, “ais” ou “cuidados”, que teremos modificada a ação humana,
independente, racional, cognoscível que compete a cada inteligência
individualizada.
Mesmo
sem a estrutura comum da organização de instituições clericais, sem a hierarquia
dos postos religiosos, o Espiritismo, em muitas situações, se assemelha a um
templo ou uma igreja. A porção majoritária, ainda interessada na conceituação
religiosa – porque, inclusive, não há tributação em relação às igrejas, suas
propriedades e seus bens diretamente associados ao ministério religioso, e isto
acaba favorecendo e facilitando a administração do dia-a-dia da pessoa jurídica
espírita – se apega à necessidade de identificação do “tipo” ou da “grés”
religiosa, em censos ou documentos públicos, no trabalho ou na educação, aqui ou
ali, ou ainda aficcionada às manifestações de fé e de crença; e “quer porque
quer” dizer que Kardec havia concebido uma estrutura tríade para o Espiritismo:
Ciência, Filosofia e Religião. E, apegados nesta trilogia, acabam “interessados”
pela terceira, a mais fácil, a mais “comum”, a mais conhecida e habituada de
todos nós, que já peregrinamos, nesta e em outras encarnações pelos cenários,
palcos e prédios religiosos, para impor, aos outros, uma “fé raciocinada”, que,
de raciocinada, quase nada possui, porquanto investida de poderes superiores
para “revelar” verdades ou definir autoridades mediúnicas ou espirituais, aqui
ou acolá.
Mas,
o vento sopra onde e porque quer... E não será a definição humana, das
estruturas convencionais de poder terreno, de configuração associativa que terá
a última palavra em definir “o que é” (e o que não é) Espiritismo.
Sou
espírita, sou laico (não-religioso), sou livre-pensador. Me dou ao direito e
admito o mesmo direito a quem quer que seja e que se diga espírita a “pensar o
Espiritismo”. Mas não me vejo obrigado a aceitar, pia e silenciosamente, uma
sucessão interminável de bobagens como sendo “prescrições espirituais” em
relação a fatos e a atos de natureza humana que, por humanos, são de
responsabilidade individual e coletiva SEM QUALQUER INTERFERÊNCIA DA DIVINDIDADE
nos possíveis resultados dele decorrentes.
Sou
espírita e me permito repelir o que é dito como “se espírita fosse”, só porque
afirmado ou assinado por certa ou dada “autoridade” reconhecida pelas pessoas
como sendo “intocável” ou “respeitável”, ou porque atribuída a uma nobre
identidade espiritual, como comunicante. Onde está o método de Kardec? Onde foi
parar o Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos? Onde ele ou qualquer outro
instrumento aferidor de legitimidade e de coerência com o edifício kardequiano
foi aplicado? Quem é que diz que determinado médium é infalível? E o é na
totalidade das vezes? E a mistificação? E os espíritos zombeteiros e levianos? E
as falhas, ainda presentes nos homens que vêm à Terra? Quem é missionário em
termos de evolução espiritual? Qual médium ou dirigente está acima de qualquer
suspeita? Pensemos...
Provai,
então, se os espíritos são de Deus... Provai se “x” o “y” que assina esta ou
aquela página ou livro tem a mesma estatura espiritual daqueles que participaram
da Codificação e, ainda, admitindo o que o próprio Kardec nos recomendou,
poderiam determinadas situações contidas nas obras básicas, serem desmentidas
pela Ciência dos Homens e, em sendo, estaria vaticinado que o Espiritismo, neste
ou naquele ponto, se modificaria.
Do
contrário, os espíritas em sua maioria congelam como máximas verdades o que está
na Codificação e aceitam que “somente” determinados espíritos “autorizados” (por
quem, mesmo?) poderiam complementar as verdades “reveladas” a partir de 1857,
até 1869.
Esquecemo-nos
do espírito de Kardec e estamos construindo mais uma seita “cristã”, petrificada
e empedernida, para justificar nossas condutas, para “controlar” pessoas e
coletividades, para instituir “nobres verdades” na pregação santificante e
salvacionista, apegando-nos a termos ou pseudo-verdades e esquecendo o espírito
humanista, libertário, libertador, progressista e livre-pensador contido na
FILOSOFIA ESPÍRITA. Que falta nos fazem pessoas do quilate de Herculano Pires
para falar “do joio e do trigo”. Que falta fazem homens de coragem para dizer: -
Este Espiritismo que vocês estão fazendo e (re)escrevendo não é a Doutrina
Espírita como no-la legou Kardec e os Espíritos Superiores e o risco, como Denis
vaticinou, de transformá-lo “nisso” que estamos transformando, nesta seita cheia
de preconceitos e pré-julgamentos é muito grande...
Libertemo-nos
enquanto é tempo para construirmos uma Doutrina de verdade, livre, libertária,
de esperanças e consolações. Para os homens e para os Espíritos!
Parabéns
Ministros do STJ por terem permitido à mulher-mãe o direito de escolha, dentro
de suas consciências, entendimento e psiquismo, sem que quaisquer outros
decidissem em seu nome! Parabéns, mulheres que optarem por continuar uma
gravidez “sem perspectivas”, pela ideia que possam ter de estar realmente
colaborando com outro ser (se ele ali, naquele corpo débil, estiver, de fato,
hospedado) e por si mesmas, pelo exercício do maior amor possível aos seres de
carne. Parabéns, mulheres, que decidirem pela interrupção da gravidez, por
entenderem, dentro de seu momento existencial, que não há perspectiva nem
proveito para si ou para outrem naquela gestação, para que tenham outras
oportunidades de plena maternidade. Parabéns espíritas conscientes que, despidos
de dogmas ou fundamentalismos, querem contribuir e fazem todo o possível para
participar da vida social e construir uma sociedade melhor, solidária, fraterna
e pacífica! Obrigado Espíritos Superiores pelo ensinamento espiritual e a Deus
pela oportunidade de exercício de nossa inteligência, raciocínio e
liberdade!