Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta
Um dos mais importantes objetos mágicos a ser considerado é o espelho. Dada à sua particularidade de refletir imagens, perfeitas ou deformadas, iluminadas ou à penumbra, no espelho colhemos aquilo que somos, bem como tudo aquilo que deixamos de ser.
Segundo tradições esotéricas orientais e ocidentais, o espelho é instrumento da iluminação, fazendo-se presente quase que invariavelmente nos rituais iniciáticos preliminares, destinado a causar certo medo e estranheza a cada um dos neófitos que, à luz de velas, diante dele se coloca, na pretensão de vencer os terrores do primeiro umbral e penetrar definitivamente na longa senda do autoconhecimento.
À frente do espelho, inevitavelmente, o homem se depara consigo mesmo, e pode perscrutar-se além da simples fachada com que se mostra ao mundo. Isto porque o espelho, assim concebem os místicos, parece estar dotado de vida própria, capaz que é de instigar nosso psiquismo e estimular o intelecto a perceber melhor os detalhes da alma, ocultos por detrás da “face aparente” inserida no mundo sensível, projetada como imagem.
Evidentemente, com o intuito de ressaltar essa incrível propriedade comum aos homens e ao espelho, optamos por introduzir o leitor a este tema por uma via, antes de tudo, de natureza reflexiva. Mas no que consiste, de fato, a reflexão? Além da simples replicação de um objeto real por meio de sua imagem, a reflexão, filosoficamente, representa a capacidade exclusivamente humana de pensar o próprio pensamento, isto é, de abstrair-se e ao mesmo tempo aprofundar-se em torno de uma questão. Refletir, mais do que um exercício lógico, meramente racional, leva-nos a uma via de ascese espiritual, pela qual podemos alçar-nos a um estado psíquico transcendente, superior àquele onde comumente trabalha o intelecto.
A palavra reflexo se constrói a partir verbo latino flectere, que se traduz por “fletir” ou “curvar-se”, e pelo antepositivo re, que expressa aquilo que se faz “novamente” ou “para trás”. Refletir, portanto, etimologicamente é “inclinar-se para trás”. Jung bem definiu que refletir não deve ser entendido como o simples ato de pensar, senão como uma atitude; a reflexão nos permite regrar com prudência nosso relativo arbítrio frente às leis da natureza. Pela reflexão podemos aprofundar as experiências ou descobertas que vivenciamos, sobre as quais deitamos antigas impressões colhidas em nosso caminho, de modo a confrontarmos o velho com o novo em busca de um denominador comum seguro que nos facilite o passo adiante na jornada. Pela reflexão, buscamos compreender o outro lado de todas as coisas, seja do ser, do Universo, ou do oculto inacessível.
Não por acaso os antigos se valiam duplamente do espelho, fosse para o exercício de práticas mágicas, fosse para, por meio dele, observar o firmamento. A profissão de olhar o céu é das mais arcaicas; dela dependeu a sobrevivência das culturas agrárias que primeiro se estabeleceram. Os caldeus, por exemplo, precursores da astrologia, já a praticavam bem antes de 6 mil a.C. Os egípcios igualmente aprenderam a ler o céu e estudar o comportamento dos astros por meio de amplos espelhos d’água, fossem estes a superfície de lagos serenos ou o diâmetro circundado por tachos de bronze amplos o bastante para permitir o estudo de determinada área celeste.
Os gregos assimilaram dos egípcios essa técnica e aplicavam o verbo teorém à arte de observar o céu, sendo chamados de teoreticós os sábios que teciam comentários e especulavam acerca dos astros, de onde derivou o termo “teorema”. O correlato latino a designar essa prática é considerare, que originalmente significava “examinar com cuidado e respeito religioso os astros, visto que o vocábulo provém de sidus (estrela). Curiosamente, considerare é sinônimo de speculare, verbo latino dedicado aos “especuladores”, isto é, àqueles que refletiam e teorizavam acerca de algo, principalmente sobre questões astronômicas e astrológicas, já que estas ciências não se diferenciaram senão recentemente, a partir do século XVII.
Dessa digressão semântica resta a oportuna lição: sempre que consideramos alguma coisa, em verdade nos curvamos humildemente para melhor refletir sobre questões que lhe são inerentes; de mesmo modo, considerar alguém é levar em conta a luz do outro; ademais, a consideração “em si” se revela uma sábia receita capaz de universalmente ensinar a humanidade, inspirada pelas luzes do céu, a respeitar-se como um todo. Considere o leitor, por favor, esta questão. Reflitamos juntos sobre o nosso tempo.
Reforcemos os pressupostos mistérios desse artefato místico: cumpre dizer que ninguém sabe com exatidão qual a origem do espelho. Sabe-se, é claro, que está atrelada à descoberta do vidro que, segundo Plínio (23 a 79 d.C.), ocorreu primeiramente entre os fenícios, conforme nos relata o cronista no livro 36 de sua Enciclopédia.
Mercadores fenícios voltavam em caravana do Egito e marchavam pelo deserto em direção a Sídon, quando se detiveram às margens do rio Belus para pernoitar. Traziam em seus camelos um farto carregamento de natrão, mistura rica em carbonato de sódio, com a qual tingiam suas lãs. Ao acenderem o fogo, valeram-se dos maiores pedaços de natrão para, sobre eles, apoiar os vasos com a caça a ser cozida. Após comerem, adormeceram ao pé do fogo. Pela manhã, em lugar dos blocos de natrão, encontraram pedras brilhantes e transparentes, como se fossem enormes pedras preciosas, frente às quais se prostraram acreditando que a transformação fosse obra de algum gênio ou divindade. Mas Zelu, sábio chefe, percebeu que sob os blocos de natrão a areia (rica em óxido de silício) desaparecera. Ordenou que se reacendesse o fogo e durante toda a tarde repetiram o processo da queima, até que viram escorrer das cinzas da areia e do natrão uma esteira de líquido rubro fumegante. Antes que a mistura incandescente se solidificasse, Zelu a plasmou habilmente com sua adaga, moldando um balão transparente diante da estupefação de todos: havia sido descoberto o vidro!
Achados arqueológicos, entretanto, revelam contas de vidro manufaturadas, fabricadas pelos egípcios antes mesmo de 3.000 a.C., na transição da idade do cobre para a do bronze. Acredita-se que os egípcios já dominassem a técnica de soprar o vidro por volta de 1.400 a.C., a partir da XVIII dinastia. Tal segredo, inicialmente propriedade exclusiva dos sacerdotes de Tebas, está evidentemente arraigado aos primórdios da alquimia. Tebas tornou-se o grande centro de produção de pérolas de vidro coloridas, a imitar pedras preciosas, pertencentes aos tesouros de muitos faraós e comumente encontradas nos túmulos de Tel-el-Amarna. Cite-se ainda que o corpo de Ramsés II, que reinou de 1290 a 1224 a.C., repousava num cofre de vidro, conforme o encontrou o arqueólogo Gaston Maspero, em 1886.
Certo também é que fenícios e egípcios fabricavam espelhos de bronze desde 2000 a.C. e seu uso sempre esteve atrelado à prática da magia. Uma das mais arcaicas técnicas de adivinhação envolve o uso do espelho mágico. Não é à toa que o moto restou imortalizado em vários contos de fadas, mais destacado na história de Branca de Neve, na qual a bruxa madrasta tem o poder de invocar, por meio de imprecações, o gênio do espelho que lhe permite saber tudo o que ocorre à sua volta.
Tal procedimento, que remonta a certas classes de iniciados do antigo Egito, também era praticado entre as tribos magistas do velho mundo persa e, particularmente, alcançou fama entre as temíveis feiticeiras da Tessália, que teriam ensinado ao sábio Pitágoras (século VI a.C.) sua arte. Entre os gregos, tal técnica recebeu o nome de catoptromancia, ou seja, adivinhação (mantéia) pelo espelho (cátoptron). Pitágoras, certas lendas apoiam, possuía seu espelho mágico. Expondo o instrumento sob a luz da lua cheia, absorto pelo reflexo, o mestre deixava sua mente divagar e, assim, vislumbrava o futuro.
Práticas mágicas semelhantes valem-se do espelho como instrumento para interpelar os mortos, buscando por meio dele encontrar esclarecimentos banhados na sabedoria ancestral. O inglês John Dee (1527-1608), médico alquimista e filósofo, polêmica figura elisabetiana, dizia praticar a necromancia e invocar os espíritos através de um espelho negro, conforme fora iniciado nessa arte pelo ocultista Edward Kelly, falecido em 1597. Anos após a morte de Dee, publicou-se seu livro de memórias, intitulado “Verdadeiro e fiel relato sobre quanto houve por muitos anos entre o Dr. Dee e alguns espíritos”.
O espelho, a história do ocultismo nos revela, pressupõe-se estar dotado de propriedades mágicas a nos revelar um portal para realidades outras, invertidas ou transcendentes. Quem primeiro explorou o tema na literatura foi o matemático Charles L. Dodgson (1832-1898), imortalizado sob o pseudônimo de Lewis Carroll, autor de Alice no País do Espelho, que, sob o véu de uma história infantil, soube guardar toda uma profunda alegoria hermético-alquímica, assunto que poderemos tratar noutra matéria.
Na mitologia, contudo, quem primeiro se projetou para dentro do espelho foi o jovem Narciso, o mais belo dos mortais, filho do rio Cefiso e da ninfa Liríope. Mas competir com os deuses em beleza era afronta imperdoável, veleidade a ser tragicamente punida. Certa feita, sedento, ao curvar-se para tomar água na profunda fonte de Téspias, Narciso, sem se dar conta de que via sua própria imagem, apaixona-se pelo rosto refletido e mergulha em busca dele para nunca mais voltar. Claro, o mito aponta para as armadilhas da vaidade e do solepcismo (o eu como única realidade), mas uma outra leitura pode ser aqui proposta, a espelhar a mais comum.
Narciso, cuja sina assemelha-se muito com a de Édipo, pois também ele se perde no exato momento em que se encontra, mergulha na fonte nem tanto por excesso de vaidade, mas sim por levar ao extremo seu instinto de reflexão, do qual toda alma está dotada. Isto é, o jovem se atira em direção a si mesmo, sem maiores critérios que o protejam nesse ato natural desenfreado de querer se conhecer profundamente. Narciso é vítima de seu arroubo de atividade endo-psíquica. Ele se afoga em sua própria reflexão; alcança ousadamente o portal da transcendência, mas se deixa perder ou diluir nas águas do grande inconsciente. A língua francesa, precisamente, expressa essa verdade: espelho em francês se diz miroir, palavra derivada do verbo mirermirage (miragem), que bem expressa a ilusão que nos cerca, implícita em nossa realidade, no mundo sensível em que vivemos, mera imagem imperfeita do mundo divino que nos é absolutamente transcendente. (ver, olhar atentamente), de onde se extrai a palavra
De certo modo, Narciso traduz na escala microcósmica e humana o eterno mito da alma que, desejando conhecer-se, resolve projetar-se na matéria, mero reflexo de si mesma, estado este capaz, entretanto, de lhe oferecer experiências novas que sua condição divina e pura nunca lhe daria.
Mergulhando no espelho da vida, de Narciso ou de Alice, a alma assume seu desejo pelo corpo e em sua divina vontade aceita humildemente sofrer a experiência da natureza humana; admite trocar o Uno pela multiplicidade, o universal pelo particular, e satisfaz-se em separar-se de seu eterno estado imponderável para assumir a angustiante e breve sina da existência temporânea.
O tema da alma, considerada como espelho por Platão e Plotino, faculta ao Uno Absoluto expressar-se por intermédio de cada criatura, isto é, permite a Deus que se visualize nas múltiplas faces sobre as quais Ele projeta sua imagem, e que se realize ao provar da própria criação. Consoante a máxima alquímica que diz que assim como é em cima, é embaixo, assim como é embaixo é em cima, para assim realizar os milagres da unidade, os místicos balizam que meditar regularmente em frente de um espelho, revela-se uma prática de cotidiana sabedoria. O espelho nos aproxima de nós mesmos, provoca o ego a mergulhar em seu próprio abismo e o conduz, a partir disso, pelo portal do imponderável que, uma vez cruzado, nos eleva a outros níveis de expressão e consciência.
Claro, não devemos nos deixar tomar pelo instinto reflexivo patológico de Narciso, mas se soubermos experimentar com leveza e intuição a densidade do mundo espe(ta)cular de Alice, poderemos, sem maiores riscos de perder o senso de realidade, explorar sabiamente todas as portas ocultas que ela contém. Nada melhor que um espelho para nos colocar diante e bem dentro de nós mesmos!
Fonte: Amigo da Alma
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