A vida é um grande teste para o discernimento daquele que procura viver em paz consigo e com os outros. Luz e sombra, verdade e mentira, joio e trigo se misturam a cada instante no agitado mundo humano. Em conseqüência, a confiança cega raramente é uma boa base para as relações humanas e sociais. A qualidade dos relacionamentos só tem a ganhar quando eles se guiam por princípios como a transparência, o controle democrático e o livre acesso à informação. A abertura ao diálogo e ao questionamento é um gesto preventivo que impede o surgimento da hipocrisia, das maldades açucaradas e das mentiras que parecem verdades.
Nenhum grupo ou instituição está livre de enfrentar o desafio da desonestidade. Nem sempre há um grau absoluto de sinceridade na relação de casal, entre amigos, irmãos ou colegas de trabalho. Em qualquer profissão, país ou religião, há gente honesta e boa mas, ao mesmo tempo, há outras pessoas que se julgam muito espertas. A possibilidade de picaretagem está presente em todas as atividades humanas.
Há, também, ilusões e falsidades que envolvem a busca de ideais, a prática espiritual e a vivência do sagrado. Elas afetam diretamente a relação da pessoa com sua alma imortal. Por isso, os líderes comunitários ou espirituais e todos os grupos voltados para o bem comum deveriam ser especialmente cuidadosos com questões como a capacidade de aprender com os próprios erros, a aceitação de opiniões divergentes, a liberdade de pensamento e a coerência entre discurso e prática.
Sempre que a ilusão envolve mais de uma pessoa, a velha lei da oferta e da demanda entra em vigor. Se alguém engana, é porque uma outra pessoa está aceitando ser enganada, ou, às vezes, até buscando isto inconscientemente. O cidadão que procura desesperadamente um alívio para os seus sofrimentos mas prefere não assumir responsabilidade direta sobre sua vida acaba criando uma grande oportunidade para a picaretagem. Uma tarefa dos líderes do século 21 é eliminar da cultura humana aquele messianismo pelo qual se cria a ilusão de que algum salvador providencial - político, religioso, etc. - fará, sozinho, a tarefa que é de todos e de cada um. Não há muletas no processo da libertação, seja ela política, social ou espiritual. O salvador todo-poderoso e o picareta espertalhão são, quase sempre, as duas faces da mesma moeda falsa, aceitada por aquele que pretende alcançar a libertação sem esforço próprio.
A escritora Helena Blavatsky conta que há cerca de 2500 anos o grande rei Prasenajit, amigo e protetor de Gautama Buda, sugeriu ao mestre que ele fizesse milagres públicos. Assim, ele iria demonstrar a todos a força da sua sabedoria. Gautama respondeu: “Grande rei, eu não ensino a Lei aos meus discípulos dizendo-lhes que usem os seus poderes sobrenaturais para fazer, diante dos brâmanes e dos notáveis, os maiores milagres que o homem já viu. Eu lhes digo, quando ensino a Lei: ‘Vivam, ó santos, ocultando suas grandes obras e exibindo seus pecados’.” (1) Este ensinamento não é exclusividade do budismo. No Novo Testamento, Jesus Cristo dá um exemplo de completa humildade pessoal e, em momentos decisivos do evangelho, recusa-se a fazer milagres ou demonstrar os seus poderes, mesmo sabendo que, por isso, será torturado até a morte. São Francisco de Assis sempre falou de si como de um pecador: os outros é que o reconheciam como santo. A vida dos grandes místicos das várias religiões mostra atitude semelhante, e não por acaso.
A cura da alma humana é um processo natural: a boa cicatrização ocorre de dentro para fora e só é possível quando a ferida está em contato com o ar livre da verdade. O hipócrita pensa que é esperto e tapa suas feridas, mas isto o faz apodrecer por dentro. Os sentimentos negativos têm o mau costume de esconder sua face, mas quanto mais disfarçado estiver o egoísmo na alma do praticante religioso, maior é o perigo que o ameaça.
Ao abordar o tema da sinceridade em seu livro Meditação Taoísta, Thomas Cleary cita uma antiga escritura chinesa:
“Não há nada no mundo que não tenha duas versões, a verdadeira e a falsa. A prática do Caminho também pode ser verdadeira ou falsa, portanto, os estudantes devem, primeiro, distinguir as diferenças. (...) A verdadeira prática é a sinceridade total. Não é evitar o mundo ou recitar as escrituras.(...) O falso é antagônico ao verdadeiro, assim, se não for eliminado, prejudicará o verdadeiro. Mas você deve achar a maneira adequada de livrar-se dele. Se não achar esta maneira (..) o falso não poderá ser eliminado e o verdadeiro certamente ficará prejudicado.” (2)
Para o taoísmo, o indivíduo deve se purificar por dentro antes de se purificar por fora. As religiões autênticas ensinam o desprezo pelas aparências. Armado de bom senso, discernimento e resistência à dor, o estudante da sabedoria divina percebe que não existe uma linha divisória clara separando o mundo espiritual do mundo material. Fazer algo “em nome de Deus” não lhe dá garantia alguma de que sua ação seja boa ou correta: a história humana está cheia de comprovações deste fato. Também não basta crer em alguma coisa divina para que as causas da dor desapareçam. É necessário que o indivíduo compreenda gradualmente o modo como funciona o egoísmo em sua vida cotidiana, para que ele possa eliminar aos poucos o egoísmo da sua prática religiosa, da sua militância social ou atividade espiritualista.
Não é fácil, mas vale a pena. A purificação das motivações pessoais é um processo fascinante e sagrado. Tudo depende das intenções, porque elas é que definem o nosso rumo. Mas a mudança para melhor é gradual. Durante muito tempo uma forte devoção espiritual pode servir de fachada para propósitos inconscientemente egoístas. Há pessoas que adoram o objeto da sua devoção com o objetivo de obter algo em troca. Muitas vezes, depois de algum tempo se decepcionam e repetem a tentativa com outro objeto de devoção. Este tipo de praticante existe em todas as grandes religiões do mundo, e também nos círculos esotéricos e espiritualistas. O ingênuo e o desinformado buscam estabelecer uma relação de troca comercial com a divindade. Eles desejam um investimento seguro. Querem garantir vantagens materiais, ou lucros espirituais como êxtase, santidade e prestígio. Assim, abrem as portas para os picaretas tirarem proveito da sua ignorância. O sábio indiano Ramana Maharshi (1879-1950) discutiu esta questão com muita franqueza.
Considerado um dos maiores sábios que conviveram com a humanidade no século vinte, Ramana atingiu a iluminação aos 17 anos de idade. Algum tempo depois, ele passou a viver no seu ashram ou comunidade espiritual em Tiruvanamalai, no sul da Índia. Ele se mantinha em um estado permanente de contemplação mística. Durante algumas horas por dia, no entanto, ele aceitava responder perguntas. Certa vez um discípulo mencionou as dezenas de presentes que ele recebia, e dos quais não parecia tomar sequer conhecimento. Os numerosos visitantes do ashram lhe traziam lembranças e oferendas com o objetivo de obter a graça divina. Sri Ramana Maharshi respondeu perguntando:
“Por que eles trazem presentes? Eu os quero? Mesmo que eu os recusasse, eles lançariam os presentes sobre mim! Para quê? Não é o mesmo que lançar a isca para fisgar o peixe? O pescador está ansioso para alimentar-se do peixe!”
Ramana via este tipo de devoção pessoal como uma tentativa de suborno, e uma forma de fuga daquilo que realmente interessa. Quando seus seguidores quiseram comemorar seu aniversário com uma grande festa, ele escreveu um protesto: “Vocês, que querem comemorar aniversários, procurem compreender, primeiro, seus próprios nascimentos. O verdadeiro dia do nascimento de alguém é quando ele entra Naquilo que transcende o nascimento e a morte – o Ser Eterno. Pelo menos, em seus aniversários, vocês deveriam lamentar seu ingresso neste mundo ilusório (samsara). Glorificar-se nele e celebrá-lo é como enfeitar e dar grande importância a um corpo sem vida. Buscar o seu verdadeiro Ser e mergulhar nele – isto é sabedoria.” (3)
Alguns dos melhores instrutores preferem usar a linguagem direta. Discutindo a questão da falsidade, o místico espanhol São João da Cruz (1542-1591) escreveu:
“Não há mentira tão disfarçada e artificiosa que, se a examinarmos bem, não venhamos a descobri-la, de um jeito ou de outro. Nem existe demônio transfigurado em anjo de luz que, bem observado, não dê a perceber quem é. Nem há hipócrita tão esperto, dissimulado e fingido que, depois de poucas diligências e exames, não venhamos a descobrir.” (4)
Para isso, porém, é preciso eliminar o processo de auto-ilusão. Só a honestidade consigo mesmo dá a alguém o discernimento necessário para identificar corretamente a falsidade no mundo externo. Portanto, uma das principais tarefas do guerreiro da verdade é destruir as sementes da ilusão e da hipocrisia dentro de si. É claro que ele só pode fazer isto observando serenamente os seus erros. Mas para manter a serenidade há uma condição prévia central. Todos os sábios tiveram que passar pelo desafio. Ele deve ser indiferente em relação à dor e ao prazer pessoais.
Conta-se que certo dia, ao escutar a declamação de uns poucos versos durante uma reunião, São João da Cruz teve uma súbita expansão de consciência, imobilizou seu corpo físico e ficou durante um longo tempo em completo êxtase. Os cinco versos ouvidos por ele, de grande simplicidade, abordavam o princípio estóico da indiferença à dor. Eles estão publicados atualmente em suas Obras Completas, e são os seguintes:
Quem não provou amarguras,
No vale humano da dor,
Nada entende de doçuras,
E desconhece o que é o amor;
Amarguras são o manto dos que amam com ardor. [ “Obras Completas”, p. 78 ]
A fuga automática e instintiva do sofrimento leva muitos a falsear a verdade, a aceitar a mentira e a abrir espaço para diferentes formas de desonestidade, consciente e inconsciente. Por este motivo, os grandes sábios e filósofos de todos os tempos têm sido indiferentes à dor pessoal. Eles sabem que a graça divina surge de dentro para fora na alma que renuncia a manipular a vida. A bem-aventurança procura fielmente aquele que não foge da dor ou da verdade.
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Notas Para um Manual Prático:
Como Detectar a Picaretagem
Em qualquer movimento comunitário ou espiritualista, quanto mais espírito crítico houver em relação aos processos de liderança, menor será o perigo da vaidade e do amor pelo poder. Os padrões de liderança corretos surgem junto com toda uma nova cultura da solidariedade. Não existe um método infalível para detectar picaretagens. No entanto, aqui estão alguns pontos básicos que permitem avaliar melhor um líder espiritual e aumentar a autenticidade de nossos movimentos e instituições.
1) O uso da transparência.
O bom líder faz da sua vida um processo aberto e transforma os outros em fiscais do que faz. Ele nunca considera como inimigo quem o questiona de modo sério e leal. Ele aprende, com as críticas, a melhorar-se cada vez mais. O picareta, por outro lado, é escravo da sua própria esperteza. Ele abusa da astúcia, constrói uma imagem falsa de si e é um manipulador de aparências – até que o feitiço se volta contra ele.
2) Os mecanismos de poder.
Os mecanismos de tomada de decisão do grupo ou instituição que você quer avaliar são abertos, ou fechados? A comunhão espiritual significa, entre outras coisas, confiança na assembléia, livre acesso à informação, avaliação crítica e autocrítica, escolha democrática dos rumos a seguir. O verdadeiro líder saberá apontar o melhor caminho de modo que todos o reconheçam como legítimo. Já o picareta fará segredo de muitas coisas, alegará que está em contato direto com alguma inteligência divina e inventará desculpas variadas para decidir tudo sozinho.
3) A administração do dinheiro.
Para manter a boa saúde ética e espiritual de um grupo humano as questões materiais e que envolvem dinheiro devem ser abertamente discutidas, anotadas e resolvidas com toda clareza. As eventuais doações contribuições à instituição ou ao grupo devem ser feitas de modo claro e impessoal. Mesmo quando há uma liderança fortemente estabelecida, deve haver transparência e controle democrático em relação a tudo o que envolve dinheiro e poder de decisão.
4) A relação entre palavra e ação.
Observe se o líder tenta honestamente vivenciar o ideal que ele colocou diante de si. O líder maduro luta consigo mesmo. Ele cai e levanta inúmeras vezes até unir sentimento, pensamento, ação e palavras com o fio sólido da coerência e da lealdade a si próprio. Como confia em si, não teme o aparecimento dos seus erros. O picareta não acredita no seu próprio coração e, por isso, procura viver das aparências. Em alguns casos ele diz uma coisa, pensa outra, deseja uma terceira coisa e faz algo que nada tem a ver com os itens anteriores. Ou então diz uma coisa para cada pessoa, tentando agradar a todos e causando, assim, grande confusão.
5) O método de tentativa e erro.
Se o líder se comportar como se fosse infalível ou superior aos demais, mau sinal. Caso a instituição se coloque como única portadora da luz e da sabedoria, o caso é grave. O bom líder se protege das suas próprias ilusões estimulando o espírito crítico nos demais. Assim ele testa os possíveis pontos fracos da sua estratégia.
6) A questão pedagógica.
Para os esquemas de picaretagem, é fundamental vender a ilusão de que alguns sabem e outros não sabem. Assim os picaretas transformam os cidadãos em meros consumidores e ouvintes. O fato é que ninguém sabe tanto que necessite falar o tempo todo, e ninguém sabe tão pouco que não tenha nada de importante a ensinar. O instrutor é apenas um auxiliar do processo autônomo de aprendizagem. Ele se coloca a serviço do aprendiz. Não pretende colocar o aprendiz a seu serviço.
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NOTAS.
(1) “Ísis Sem Véu”, de Helena P. Blavatsky, Ed. Pensamento, SP, edição em 4 volumes. Ver o volume II, p. 272.
(2) “Meditação Taoísta”, coletânea organizada por Thomas Cleary, Editora Teosófica, Brasília, 2001, 130 pp., ver p. 123.
(3) Sobre o tema dos presentes, veja a p. 95 da obra “Ensinamentos Espirituais”, Ramana Maharshi, Ed. Cultrix, SP, 148 pp. Sobre o aniversário, veja a p. 134 de “The Collected Works of Ramana Maharshi”, edited by Arthur Osborne, Sri Ramanasraman, Tiruvannamalai, South India, 1979, 293 pp.
(4) “São João da Cruz, Obras Completas”, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1996, edição em um volume de 1.149 pp. Ver pp. 76-77.
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