O escritor Robson Pinheiro concede entrevista esclarecedora e responde aos seus críticos com determinação: "Como nosso compromisso é com o espiritismo — e não com os espíritas ou com a leitura que muitos fazem do espiritismo —, considero-me fiel ao mandato a mim confiado." (Nas imagens, Robson Pinheiro detalhe da capa do livro Legião, de sua autoria)
(Entrevista a Manoel Fernandes Neto)
Por que alguns irmãos do movimento espírita classificam seu trabalho de umbandista e não doutrinário? Você pode comentar esta questão?
Primeiramente, é preciso esclarecer que umbandista não se opõe a doutrinário, se entendermos doutrinário como atinente ao espiritismo. Afinal, um trabalho pode ser coerente com a doutrina de umbanda, e não com a doutrina espírita.
No meu caso, entretanto, não conheço acerca de doutrina de umbanda, nem tampouco qualquer linha de meus livros versam sobre esse tema. Ou seja, nem eu conheço o assunto nem os espíritos que escrevem através de mim abordam doutrina umbandista. Afinal, sou espírita, minha formação é espírita e o compromisso meu e dos espíritos que me dirigem é com o espiritismo. E aí a questão proposta esbarra em algo maior, para o qual devo me alongar a fim de procurar ser mais claro.
Ocorre que, para a certa surpresa de Allan Kardec, muitos de seus adeptos acabaram por delimitar assuntos para o debate ou o olhar espírita, baseando-se em uma perspectiva estreita e, com isso, separando temas e abordagens em compartimentos estanques — doutrinário ou antidoutrinário —, à medida que se desenvolvia o movimento espírita. Imagine, um homem que foi porta-voz de uma revelação que, segundo ele, pretendia contribuir para o esclarecimento de qualquer religião, sem constituir necessariamente uma religião à parte![1] Como esse homem poderia ser um purista, alguém que não desejasse versar sobre quaisquer temas por meio da ótica espírita, das lentes e ferramentas que o espiritismo oferece?
Essa é a leitura que faço da atitude kardequiana, que perpassa todos os seus escritos. Repare a obra de sua autoria chamada Catálogo racional para se fundar uma biblioteca espírita, que a Madras Espírita traduziu pela primeira vez, na época do saudoso Eduardo Carvalho, e a feb hoje publica na coletânea de opúsculos denominada O espiritismo em sua mais simples expressão. Naquele Catálogo, Kardec inclui uma categoria inteiramente dedicada aos livros “produzidos fora do espiritismo”, bem como outra destinada às obras contrárias à doutrina nascente. Em minha opinião, isso denota o interesse por todos os temas, a certeza de que o debate espírita não precisaria se restringir a este ou aquele tema, mas ampliar-se o máximo possível.
O que quero dizer com tudo isso é que livros meus como Tambores de Angola ou Aruanda efetivamente falam de temas ligados às doutrinas religiosas de caráter mediúnico e com forte expressão da cultura do negro e do indígena (umbanda, candomblé etc.), mas jamais enfocam seu aspecto doutrinário. Não é seu objetivo nem minha pretensão. Procuram tão-somente demonstrar como o trabalho ocorre nesses meios tanto para promover um exercício de fraternidade — mostrando que não é só o jeito espírita a única forma de fazer — quanto para destacar que, por razões históricas e culturais que transcendem aspectos doutrinários, figuras como o preto-velho, o caboclo e o exu fazem parte da realidade brasileira, quer o espírita goste ou não.
Afinal, por que razão não haveriam de povoar o panorama espiritual do Brasil os espíritos que aqui viveram e morreram? E, estando aqui, só podem contribuir nesta ou naquela religião? Ora, se o espírito é minimamente esclarecido, não é sectarista; usa as ferramentas de cada culto conforme a tradição de seus adeptos. Sendo assim, um preto-velho pode usar cachimbo numa casa de umbanda, onde isso é habitual, e certamente não o fará numa casa espírita, pois que nesta soaria como afronta.
Se fosse verdadeira a classificação dos espíritos de acordo com sua feição espiritual — “preto-velho é espírito da umbanda”, por exemplo —, formulo a seguinte indagação. Como podemos trabalhar com padres e freiras no espiritismo? Acaso alguém lhes pediu para abandonarem seus títulos e vestes sacerdotais para que pudessem ser aceitos? Acaso alguém viu em sua presença e atuação uma ameaça de catolicização do espiritismo? Então, por que adotar uma conduta com aqueles que representam o povo historicamente oprimido e discriminado e portar-se de outro modo com aqueles que têm seu passado associado à instituição que mais atrocidades cometeu contra a humanidade, em inumeráveis perseguições em nome de Deus?
Qual a importância do Espiritismo para o seu trabalho?
Meu livro de memórias,[2] em que narro histórias minhas com os espíritos, relata como ingressei no espiritismo. Foi por meio da intervenção direta dos benfeitores na igreja evangélica, quando me preparava para formar-me pastor. Foram eles que me apresentaram os livros de Allan Kardec e o endereço de um centro espírita a procurar, ambos anotados no púlpito da igreja, ao fim de uma pregação mediúnica que fizeram através de mim.
Foi Chico Xavier, ainda que com a contribuição mais esparsa de outros médiuns, o porta-voz dos espíritos para a fundação e orientação de todos os núcleos de trabalho de que participo hoje. Ele é quem encorajou a publicação do primeiro livro — Canção da esperança —, que eu temia, apesar das reiteradas orientações dos espíritos por meu intermédio. A ponto de entregar-me psicografia dele, de autoria do espírito Bezerra de Menezes, que prefacia o livro. Ele também foi quem disse, ao lhe mostrar Tambores de Angola no prelo: “Lance, meu filho, pois esse livro precisa sair. Mas aproveite e se lance para fora do país por um tempo (…) por causa da caridade dos irmãos espíritas…” — disse, apontando para a língua enquanto pronunciava a palavra caridade.
Além disso, e do que já demonstrei na resposta à primeira pergunta, os críticos de meus livros ainda não nos apontaram objetivamente, uma vez sequer, em que ponto nossos livros contrariam Kardec e seus escritos. Como nosso compromisso é com o espiritismo — e não com os espíritas ou com a leitura que muitos fazem do espiritismo —, considero-me fiel ao mandato a mim confiado.
Sendo assim, o espiritismo é o ar que respiro, é o compromisso maior da Universidade do Espírito de Minas Gerias, instituição que engloba as demais por mim fundadas e que hoje conta com mais de 300 alunos em cursos regulares de estudo do espiritismo. A questão talvez seja o conceito que cada um tem a respeito do que seja espiritismo, do que represente ser fiel aos preceitos da falange do Espírito Verdade. A quem caberá o monopólio de tal julgamento?
Nossos livros são desafiadores, controversos, talvez polêmicos, e chocam o status quo no movimento espírita? Que bom! Kardec foi altamente controvertido e criticado, a seu tempo. O mesmo vale para Jesus. Portanto, creio que também assim — embora não somente assim — seguimos seus passos.
3) Uma análise de José Passini do seu livro Legião circula na Internet. Nela, o autor comenta dezenas de passagens e frases do seu livro com o objetivo de confirmar a tese de que suas “revelações” não seriam reais, colocando dúvidas quanto a seriedade de seu trabalho. O que você pode dizer a críticos desta natureza?
Não conheço tal crítica, feita em público, mas jamais remetida à Editora; no mínimo, nunca chegou às minhas mãos. Portanto, não posso analisar seu conteúdo nem comentá-la.
Entretanto, hei de confessar que não acompanho semelhantes debates na internet, pois a vejo como um fórum onde se resvala para a crítica pessoal, com desdém e desrespeito, ainda de modo mais fácil e freqüente que em outras mídias. Nas poucas vezes em que resolvi lidar com tais comentários, concluí que de duas, uma: ou fazia meu trabalho, ou me ocupava em ficar respondendo e debatendo as inúmeras críticas. Optei pela primeira alternativa, sobretudo porque não há tempo para tudo quanto há. Há tanto por realizar!
Consolo-me na postura de todos os verdadeiros seguidores de Jesus — a que aspiro ser —, que jamais se deixaram levar pelas críticas a ponto de demovê-los da tarefa que lhes fora confiada. E críticos sempre os há! Chico me disse, certo dia, algo como: “Se ficar em casa e não fizer nada, ainda assim falarão de você, chamando-o de preguiçoso. Portanto, prossiga!”. E o mentor Alex Zarthú: “Responda as críticas aumentando a qualidade de seu trabalho”. É nisso que tenho me baseado.
Ah! Preciso acrescentar: meus livros não trazem revelações; nada há neles que seja novidade a ponto de ser assim classificado. E são produto do pensamento de seus autores espirituais, é bom que se diga, e não fruto de elaborações que partem de meu conhecimento pessoal. Há pontos que até para mim se afiguram inusitados ou obscuros e que, de mais a mais, obrigam-me a estudar e rever meus pontos de vista. Sem contar os debates prévios à publicação, em que os enchemos de perguntas e dúvidas…
Como suas palestras e cursos vem sendo recebidos nas casas espíritas que você visita no Brasil?
Muito bem, nas que me convidam. Ao menos é assim que entendo, com algumas exceções, é claro. Ninguém agrada a todos.
Atualmente quais os trabalhos de médiuns brasileiros que você pode destacar?
São muitos… Mas que prefiro não nomear. Sabe como é: muitos são amigos ou conhecidos e, de mais a mais, evito até certo ponto até mesmo a leitura do que está sendo produzido atualmente, como forma que encontrei de me preservar da influência alheia sobre meu trabalho mediúnico.
Ciência, filosofia e religião. Como você analisa a convivência entre os pólos da Doutrina?
O espiritismo tem no laboratório da mediunidade seu campo experimental e faz-se ciência na medida em que adota um método claro para promover e lidar com os resultados obtidos. Esses resultados são, em grande medida, de natureza filosófica, de uma filosofia com conseqüências morais, e é aí que repousa seu aspecto religioso — no aspecto moral —, conforme esclarece Kardec na introdução de O Evangelho segundo o espiritismo.
Se por convivência se quer dizer de como interagem tais aspectos na atualidade, claramente a prática brasileira do espiritismo privilegiou o lado religioso, em virtude de traços fortes, inerentes à nossa cultura. Sem qualquer julgamento sobre essa realidade, é forçoso reconhecer que cabe ao adepto moderno do espiritismo conciliar tais frutos com o reacender da chama dos aspectos filosófico — por meio do incentivo ao estudo interessante e prazeroso dos postulados espíritas — e científico do espiritismo, retomando a experimentação mediúnica destemida, o exame crítico das comunicações e a coragem e a pró-atividade kardequianas ao abordar a dimensão extracorpórea.
Qual o livro de sua autoria que mais te marcou?
Sinceramente, não consigo decidir. Há vários, pelos aspectos mais distintos. Todos são como filhos, e é duro dizer a um pai que deve escolher entre os filhos.
Qual o principal conselho que você pode dar a um estudante de espiritismo?
Estude, estude, estude. Quando achar que está pronto, estude mais. Pergunte, sem medo, cultive a curiosidade verdadeira, o desejo pelo saber, que é o combustível do qual Kardec se serviu para promover as investigações que empreendeu. Jamais esqueça Kardec — mais ainda o espírito de seus textos, a atitude que revelam, que os textos propriamente ditos, num apego à letra que pode se tornar fundamentalista. Tudo começou — e persistiu — com a curiosidade do homem Kardec, seu ânimo, as perguntas por ele formuladas previamente às reuniões, com método, critério e redação esmerada. O livro dos espíritos — e o espiritismo, por extensão — nasceu a partir de suas indagações, de sua vontade de conhecer e aprender.
Em Kardec está a base para todo o resto, está o porto seguro para nossa prática, nosso dia-a-dia. Apreendamos dele a ética de nunca se render à tentação atávica de colocar os espíritos em claustros ou altares de santificação. Despeço-me com suas lúcidas palavras: “Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como houvera feito com homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados. Tais as disposições com que empreendi meus estudos e neles prossegui sempre. Observar, comparar e julgar, essa a regra que constantemente segui” (kardec, A. Obras póstumas. Rio de Janeiro, feb: s.d., ed. especial. ii parte. A minha primeira iniciação no espiritismo, p. 329).
[1] “Mais bem observado depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião; e a prova disso é que ele conta entre os seus aderentes homens de todas as crenças, que por esse fato não renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos que não deixam de praticar todos os deveres do seu culto, quando a Igreja os não repele; protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e mesmo budistas e bramanistas. Ele repousa, por conseguinte, em princípios independentes das questões dogmáticas. Suas conseqüências morais são todas no sentido do Cristianismo, porque de todas as doutrinas é esta a mais esclarecida e pura; razão pela qual, de todas as seitas religiosas do mundo, os cristãos são os mais aptos para compreendê-lo em sua verdadeira essência. Podemos exprobrá-lo por isso? Cada um pode formar de suas opiniões uma religião e interpretar à vontade as religiões conhecidas; mas daí a constituir nova Igreja, a distância é grande” (kardec, A. O que é o espíritismo? Rio de Janeiro: feb, s.d., ed. especial, p. 144-145).
[2] pinheiro, Robson. Os espíritos em minha vida. Contagem: Casa dos Espíritos, 2008, p. 187-198.
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